Por Eric Souza
O filme “Oppenheimer” conquistou o terceiro lugar entre os filmes mais lucrativos de Christopher Nolan. Nas salas de cinema ao redor do mundo, multidões descobriram a história do homem por trás da criação da Bomba Atômica, um marco na história da humanidade. Setenta anos após a criação dessa arma destrutiva, seus efeitos ainda perduram e, agora, de uma maneira surpreendente. Em julho deste ano, cientistas apresentaram um estudo indicativo de que uma nova era geológica poderia ter sido desencadeada pelos testes nucleares de 1950, e a confirmação desse fenômeno está sedimentada no leito de um lago no Canadá.
O anúncio foi feito pelo Grupo de Trabalho do Antropoceno (AWG) que, desde 2009, atua para oficializar a “Época dos Humanos”, ou Antropoceno, era que sucede o Holoceno, e é caracterizado como um período em que as atividades humanas marcam, significativamente, as transformações na Terra. Para os cientistas do grupo, ao longo dos últimos três séculos, a dimensão planetária das ações humanas foi tamanha que resultou em alterações nos âmbitos físico, químico e biológico do planeta, a ponto de dar início à nova era.
“O conceito do Antropoceno foi popularizado no ano 2000 pelo químico Paul Crutzen, ganhador do Prêmio Nobel de Química, que teve a impressão de que a Terra foi alterada de forma tão dramática pela intervenção humana, em escala planetária, que não é mais legítimo usar o termo tradicionalmente utilizado para a época da Terra, ou seja, o Holoceno”
Colin Waters, Geólogo e Coordenador da AWG
Após mais de uma década de estudos e análise de 12 locais, a AWG escolheu por votação o Lago Crawford, situado no Canadá, como o candidato mais viável para o início do Antropoceno. No lago, é possível identificar um marcador que serve como impressão digital da influência da atividade humana sobre o meio ambiente: a detecção de plutônio, vestígios dos testes de bombas nucleares. Na escala do tempo geológico, o elemento começa a sedimentar no início da década de 1950.
O Lago Crawford conta com um campo de pesquisa ativo desde 2019. As pesquisas mostram que, para além do plutônio, o leito do lago está repleto de marcadores geológicos da era dos humanos, como altos níveis de cinzas procedentes de usinas movidas a carvão, altas concentrações de metais pesados, como chumbo, e a presença de fibras e fragmentos de plástico.
Selecionar um ponto de partida físico no tempo, ou “Golden Spike”, representa um marco significativo na missão do AWG em validar a transição geológica da Terra. O coordenador do Grupo, Colin Waters, comenta que “um pré-requisito para o reconhecimento de uma nova unidade da escala de tempo cronoestratigráfica é a identificação e descrição de um perfil geológico que indique o início da mudança em escala planetária, um GSSP”.
Um GSSP, sigla para “Global Boundary Stratotype Section and Point” ou “Ponto e Seção de Estratotipo Limite Global”, é um ponto geológico específico, usado internacionalmente para marcar e definir o início de uma nova unidade na escala de tempo geológico.
De acordo com Colin Waters, “as descobertas no Lago Crawford sustentam a hipótese de que a atividade industrial e socioeconômica sem precedentes, da Grande Aceleração no meio do Século XX, causou alterações no Sistema da Terra. Isso encerrou cerca de 11.700 anos de condições estáveis do Holoceno e marcou o começo de uma nova era da Terra”.
Localizado em Ontário, Canadá, o Lago Crawford é considerado uma janela para o passado, revelando pistas essenciais sobre a evolução do planeta, sob a influência das atividades humanas. Francine McCarthy, paleoclimatóloga e pesquisadora da Brock University do Canadá, responsável pelos estudos no lago, destacou a característica única do lago como marcador de tempo natural.
“O que torna esse lago tão intrigante é o seu papel como um ‘sumidouro’ natural. Com uma profundidade de quase 24 metros em uma área relativamente pequena de 2,4 hectares, o formato do lago cria uma barreira física que impede a mistura das águas. Isso resulta em um fenômeno em que as águas do fundo não se misturam com as águas da superfície, isolando o fundo do lago dos elementos externos”, comentou Francine McCarthy.
A pesquisadora explica que o lago está localizado na formação rochosa calcária do Escarpa de Niagará e a formação do lago se deu por conta da queda do teto de uma caverna que havia se dissolvido nas rochas. O desabamento fez com que a água preenchesse essa abertura, distribuindo na água cálcio e carbonato intemperizados das rochas.
“E quando a água fica suficientemente quente, os íons de cálcio e carbonato se unem, precipitam e se cristalizam em pequenos cristais de calcita. Isso cai como neve, como chuva, passa pela coluna de água e forma camadas. Cada verão, uma nova camada branca. E é essa camada branca que podemos contar e identificar exatamente qual ano estamos observando”, detalhou Francine.
Foi essa dinâmica única que permitiu a Francine estudar as camadas anualmente sedimentadas e entender o que acontecia na atmosfera, na água e na hidrosfera, ano após ano, e confirmar o aumento excessivo de plutônio 239 a partir da década de 1950, assim como o acúmulo excessivo de outros marcadores causados pela atividade humana.
“Eu acho que consigo pensar em outra espécie que afetou o planeta de forma mais significativa. E essas são as cianobactérias que, há cerca de 2 bilhões de anos, oxigenaram a atmosfera. As cianobactérias não tinham a capacidade de pensar a respeito, reconhecer o que estavam fazendo e considerar as consequências. Mas nós o fazemos quando falamos sobre arrogância e seres humanos. Sim, tivemos um impacto massivo e continuaremos a tê-lo com 8 bilhões de seres humanos, que esperam particularmente um certo estilo de vida, um padrão de vida que, inevitavelmente, afetará o planeta no futuro. No entanto, também podemos atenuar esses impactos. Aprendemos lições do passado. Movimentos ambientais, soluções tecnológicas e, assim por diante, são possíveis”
Francine McCarthy, Paleoclimatóloga e pesquisadora da Brock University do Canadá
A proposta completa do AWG precisa ser apresentada à Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário (SQS), ainda em 2023. Os membros da SQS precisarão votar na proposta e, se concordarem com uma maioria de 60%, ela será então encaminhada à Comissão Internacional de Estratigrafia (ICS), que também terá que votar e concordar com uma maioria de 60%, para que a proposta avance para a União Internacional de Ciências Geológicas (IUGS), para consideração de ratificação final. Não há garantia de que, após a submissão do AWG à SQS, a proposta será bem-sucedida.
No Brasil, uma série chamada “A Era dos Humanos” retratou a busca pelas marcas do Antropoceno no Hemisfério Sul. A diretora da série gravou, em setembro do ano passado, em Abrolhos, na Bahia, apostando que os testes de bombas nucleares seriam o marcador votado pelo comitê para validar a transição do Holoceno para o Antropoceno.
A produção acompanhou pesquisadores do Instituto de Oceanografia da Universidade de São Paulo (IO-USP), que coletaram amostras de sedimentos em diferentes sistemas naturais ao longo de mais de uma década. Durante o estudo da composição dessas amostras, eles encontraram radionuclídeos de césio-137, um isótopo radioativo. A detecção desse isótopo é significativa, pois pode ser usado como um marcador químico na geologia do Atlântico Sul, possibilitando o estudo dos efeitos da era industrial.
“Dividimos as amostras em fatias com cerca de dois centímetros, de acordo com o momento em que cada camada de sedimento foi depositada, com as mais novas no topo. Com isso, foi possível identificar com precisão o momento em que o césio-137 foi depositado no Hemisfério Sul. As quantidades começam a ser perceptíveis a partir de 1954, com o início dos testes das bombas termonucleares de hidrogênio”, comentou o pesquisador responsável, Rubens Cesar Lopes Figueira.
A série “A Era dos Humanos” lança luz sobre o impacto dos pensamentos, intuições, emoções e sentidos humanos no meio ambiente. A obra estreia como longa-metragem, nos cinemas, no Dia da Amazônia, e no Globoplay em outubro – assista ao teaser da série abaixo.
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